sábado, 13 de agosto de 2016

Xico Sá / Quando o amor dói além


Quando o amor dói além

Duas pessoas se amam por uns 30 anos seguidos. Em algum momento, uma delas é levada embora. “E o que é levado embora é maior do que a soma do que havia"...



XICO SÁ
22 ABR 2016 - 17:03 COT




Ele entrou no salão do velório com as suas duas filhas meninas. Acabara de chegar de uma viagem muito longe. Dirigiu solitariamente mais de mil quilômetros na estrada. Até a metade do caminho, havia uma leve esperança de que a sua mulher estivesse viva; no restante, apenas a certeza inapelável da morte.
O recém-viúvo acariciou as mãos da amada. “Agora parece que também não estou mais aqui”, disse algo assim, pelo que pude captar no meu transtorno. Naquele instante fui envolvido por um rosário de frases do livro “Fazes-me falta”, da escritora portuguesa Inês Pedrosa. Daí não ter sequer a certeza que ele, meu cunhado, pronunciou exatamente estas palavras. Era uma fala de desamparo intraduzível. Seguida de um silêncio capaz de suspender o oxigênio do ambiente por alguns segundos.


Como se abrevia uma dor que se faz um estirão na poeira da volta para casa?

O “Fazes-me falta” ecoava:
“Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio – nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência.”
Passei a me torturar com a projeção dos dias seguintes. A falta, a impossibilidade, o plano de montar um pequeno restaurante ou bodega, o vinho que não beberiam mais para entorpecer a conversa toda vez que ele chegava da vida de caixeiro viajante. Como se abrevia uma dor que se faz um estirão na poeira da volta para casa?
Esse roteiro das próximas semanas me trouxe de volta uma asma que se perdeu na infância ou surtos de síndrome do pânico quando o avião fecha as portas.
Talvez eu não fosse capaz de segurar a barra, talvez não tivesse a fé necessária para a travessia, talvez eu repetisse mil vezes “o lamento noturno dos viúvos”, talvez mudasse de endereço... Um duro exercício na pele do outro.
Duas pessoas se amam por uns 30 anos seguidos. Em algum momento, por um motivo ou outro, uma delas é levada embora. “E o que é levado embora é maior do que a soma do que havia. Isso pode não ser matematicamente possível; mas é emocionalmente possível”, diz Julian Barnes em passagem do livro autobiográfico “Altos voos e quedas livres” .
Meu cunhado de Juazeiro do Norte nunca leu o viúvo e escritor inglês. Seu gesto de acariciar a mulher no velório, todavia, era uma tradução livre da mesma matemática afetiva que só é provável quando o amor dói além de todas as contas.
Dedicatória
Esta coluna é para Rosa, minha irmã que se foi nesta semana. Um certo dia, quando comecei a escrever em jornais, cheguei na sua casa e a parede da sala estava coberta com minhas crônicas. Aquilo me fez o mais comovido e premiado dos cronistas do amor louco e sem fim.
Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de O livro das mulheres extraordinárias (editora Três Estrelas) e comentarista do programa Papo de Segunda, no canal GNT.

EL PAÍS


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