sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Joan Didion / A mulher que restou

MEMÓRIAS DOLORIDAS Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos (Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)
MEMÓRIAS DOLORIDAS
Quintana, John Gregory Dunne e Joan Didion em Malibu, em 1976. As lembranças mostram como os momentos felizes foram vividos 

(Foto: John Bryson/Sygma/Corbis)

Joan Didion

A mulher que restou

Como viver depois de perder o marido e a filha única em 20 meses? Joan Didion responde à tragédia num texto delicado e brutal



Por ELIANE BRUM
26 / 08 / 2012



A VIDA NO VAZIO Joan Didion em seu apartamento em Nova York. A velhice chegou logo depois das perdas (Foto: Aristide Economopoulos/Star Ledger/Corbis)

Quando Quintana se casou, ela usava flores de jasmim entrelaçadas na grossa trança que lhe pendia nas costas. Seus pais, os escritores Joan Didion e John Gregory Dunne, brindaram a ela, sua única filha, e a Gerry, agora seu genro. Duas vezes. Uma na catedral, a outra mais tarde, num restaurante chinês de Nova York. Desejaram a eles felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos. Naquele dia, 26 de julho de 2003, eles ainda chamavam a isso de “bênçãos triviais”, aquilo que se deseja com sinceridade para quem amamos, mas quase sem pensar. Cinco meses depois, John estava morto. Um ano e oito meses depois dele, Quintana estava morta. Restou Joan, perplexa, pensando que houve um dia, houve uma vida, houve alguém com seu nome que acreditara que felicidade, saúde, amor, sorte e filhos bonitos pudessem ser bênçãos triviais.
Noites azuis (Nova Fronteira, 144 páginas, R$ 29,90, tradução de Celina Portocarrero), o último livro da jornalista, roteirista e escritora americana Joan Didion, é a narrativa de uma mulher que se descobre sozinha para testemunhar o próprio fim. Antes dele, Joan escrevera O ano do pensamento mágico, sobre o período que se seguiu à morte do homem com quem vivera por quase 40 anos, com quem escrevera roteiros para Hollywood, com quem sonhara com uma filha que se chamaria Quintana Roo. Um homem que caiu de repente sobre a mesa do jantar porque o coração parou, deixando-a só e perplexa.
Ao escrever sobre a vida sem John, ela alcançou uma síntese perfeita da catástrofe humana: “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Era essa a tragédia inescapável, a emergência para a qual não há equipes de salvamento. O ano do pensamento mágico tornou-se um best-seller nos Estados Unidos e vendeu 100 mil exemplares no Brasil. Quintana morreria pouco antes do lançamento, depois de meses com complicações de saúde cujos detalhes Joan escolhe não explicar. Tinha 39 anos.
O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras 
Noites azuis é a continuação que Joan jamais esperaria escrever. É a história de uma mulher que restou. E talvez se possa dividir a condição humana em três destinos: ou morremos jovens, de doença, tiro, terremoto, acidente de trânsito, como aconteceu com Quintana; ou vivemos até uma idade madura, mas um câncer, um infarto ou um derrame nos leva um pouco antes de todos os outros, como John; ou restamos. No território de seus afetos, Joan foi a que restou. Tinha 70 anos quando se descobriu só.
O que fazer quando você é a que resta? Se você é uma escritora, escreve. Agarra-se às palavras na tentativa de compreender o impossível, agarra-se para não afundar. Agarra-se porque é preciso enfrentar as lembranças, sempre fragmentadas, e com elas construir uma memória que faça algum sentido na paisagem devastada que agora é você. Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano. Como ao perceber que, por muito tempo, escrevera vendo as roupas de Quintana secar ao sol.
As lembranças espreitam Joan atrás de cada porta, dentro de cada gaveta. Ela levanta a tampa da caixa de joias forrada de cetim e encontra lá dentes de leite. Abre a porta do guarda-roupa e vê três velhas capas de chuva de John, uma jaqueta de camurça dada a Quintana pela mãe de seu primeiro namorado e um bolero de angorá, há muito comido pelas traças, que sua mãe ganhara de seu pai depois da Segunda Guerra Mundial. Ela abre caixas e acha convites para casamentos de gente que há muito se separou, cartões de agradecimento de funerais de pessoas cujo rosto esqueceu. “Em teoria, essas lembranças servem para trazer de volta o momento”, escreve. “Na prática, servem apenas para demonstrar quão inadequadamente apreciei o momento quando ele aconteceu.”
Em que momento surgiu Quintana Roo? Antes de se tornar criança, ela havia sido uma paisagem. Um nome visto por Joan e John num mapa do México, um nome que falava de uma geografia que ainda era terra de ninguém – ainda era, como Joan definiria, “terra incógnita”. Como todos os filhos, seus contornos foram se desenhando primeiro no território do desejo. Até que o telefone tocou.
“Tenho uma linda menina no St. John”, disse o médico aos pais que esperavam uma chance de adoção. E lá estava não um bebê entre tantos, mas o seu bebê, a sua Quintana Roo, com uma fita rosa no cabelo preto e uma pulseira no braço com as iniciais “N.I.” – nenhuma informação. Quintana sempre pediria para repetirem a história não de seu nascimento concreto, mas de seu nascimento para aqueles pais. “E se vocês não estivessem em casa para atender o telefone? E se tivessem sofrido um acidente na estrada, o que teria acontecido comigo?”, perguntava.
Joan nunca teve respostas para as perguntas da filha. Como a maioria dos pais, ela se iludira que seu bebê era uma página vazia, à espera de uma história. Mas todo recém-nascido é uma página que já começou a ser preenchida pelo desejo, ou pela neurose, ou pelo desespero, ou pelos genes, ou por tudo isso junto. No caso de Quintana Roo, também pelo abandono que assombra os filhos que um dia restaram, antes de ser escolhidos por um triz. Durante a maior parte da vida, Joan não conseguia compreender: “Como ela pôde pensar que eu não cuidaria dela?”.
Noites azuis, de Joan Didion (Foto: divulgação)
Mas isso foi antes, quando Joan ainda não tinha ouvido do médico da UTI: “Ela não consegue obter oxigênio do ventilador há pelo menos uma hora”. O que aconteceu? “Se ontem mesmo eu a segurei em meus braços. Ontem mesmo eu prometi a ela que estaria segura conosco.” Enquanto escreve, Joan sabe que homens e mulheres só descobrem a mortalidade quando têm um filho. Quando você jura proteger sua criança para sempre, mas acorda sem ar no meio da noite porque sabe que está mentindo. Você mente porque algumas mentiras são necessárias para seguir vivendo, mas você sabe – e seu filho também sabe. Com a terrível lucidez de ser aquela que restou, Joan agora é capaz de inverter a pergunta, perigosamente perto da verdade que sempre esteve lá: “Como ela poderia sequer imaginar que eu tomaria conta dela?”.
Joan descobre, enquanto amarra lembranças, que um filho será sempre, em alguma medida, uma terra incógnita. O nome, afinal, não estava deslocado. Possivelmente ela nunca precisaria pensar nisso se a ordem da vida – e da morte – não tivesse sido rompida. Agora, aqui está ela, perplexa, apavorada. É a esta altura que Joan acorda um dia e percebe que se tornou uma velha. Ela sabe o momento exato.
Era manhã de quinta-feira, 2 de agosto de 2007. Joan acordou com manchas avermelhadas no rosto e algo parecido com dor de ouvido. Desde então, seu corpo tem falhado de várias maneiras. A ponto de uma noite ela ter se surpreendido com medo de não conseguir se levantar de uma cadeira dobrável num evento público. Como foi ela que restou, agora gasta horas a fio na sala de espera de hospitais, às voltas com o preenchimento de formulários nos quais lhe pedem algo nebuloso: indicar quem chamaria em caso de emergência.
Joan descobre que não tem mais medo de morrer. Tem agora medo de não morrer – de restar sem consciência ou movimento. Restar sem poder contar nem consigo mesma. Percebe então que as noites azuis não voltarão. Aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar. “Será que eu pensava que as noites azuis durariam para sempre?”, indaga-se, para sempre perplexa.
Ela escreve, porém. As palavras também começam a lhe escapar, ela sente que seus verbos e substantivos “não dizem o que deviam dizer ou não querem”. Mas Joan vive enquanto escreve – e escreve para saber que ainda vive. Enquanto escreve, mantém todos vivos. Um truque desesperado do ilusionista que é todo escritor, mas também um milagre humano. No livro, Quintana, John e tantos outros que povoaram o mundo de Joan Didion ainda vivem. E as noites azuis continuam lá.







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