quarta-feira, 1 de julho de 2015

Rubem Fonseca / Beijinhos no rosto


Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
Beijinhos no rosto


A sua bexiga terá que ser removida inteiramente, disse Roberto. E nesses casos prepara-se um lugar para a urina ser armazenada, antes de ser excretada. Uma parte do seu intestino será convertida num pequeno saco, ligado aos ureteres. A urina desse receptáculo será direcionada para uma bolsa colocada em uma abertura na sua parede abdominal. Estou descrevendo esse procedimento em linguagem leiga para que você possa entender. Essa bolsa será oculta pelas suas roupas e terá que ser esvaziada periodicamente. Fui claro?

Foi, respondi acendendo um cigarro.

Gostaria de marcar a cirurgia para logo depois desses exames que estou pedindo. Já lhe falei da relação entre o câncer da bexiga e o fumo?

Não me lembro.

Três em cada cinco casos de câncer na bexiga são ligados ao fumo. Esse vínculo entre o fumo e o câncer da bexiga é especialmente forte entre os homens.

Prometo que vou deixar de fumar.

Este ano, no mundo, ocorrerão cerca de trezentos mil novos casos de câncer de bexiga.


É mesmo?

É o quarto tipo de câncer mais comum e a sétima causa de morte por câncer.

Tive vontade de mandar o Roberto parar de me chatear, mas ele, além de meu médico, era meu amigo.

O câncer de bexiga, ele continuou, pode ocorrer em qualquer idade, mas usualmente atinge pessoas com mais de cinqüenta anos. Você faz cinqüenta anos no mês que vem. É um mês mais velho do que eu.

Estou atrasado para um compromisso, tenho que ir, Roberto.

Não se esqueça de fazer os exames.

Saí correndo. Eu não tinha encontro algum. Queria fumar outro cigarro em paz. E também precisava encontrar alguém que me arranjasse um revólver. Lembrei-me do meu irmão.

Telefonei para ele.

Você ainda tem aquela arma? Tenho. Por quê?

Quer vender?

Não.

Você não tem medo de que um dos teus filhos ache o revólver e dê um tiro na cabeça do outro? Uma coisa assim aconteceu outro dia. Deu no jornal.

Meu revólver está trancado numa gaveta.

O desse infeliz, segundo dizia o jornal, também.

Eu não li nada sobre isso.

Você sempre diz que só lê a manchete do jornal. Isso não dá manchete, acontece todo dia.

E como é que foi?

O menino estava brincando de mocinho e bandido com o irmão e a desgraça aconteceu. Qualquer dia vou ler no jornal que um sobrinho meu matou o outro numa brincadeira.

Deixa de ser agourento.

Vou passar aí hoje à noite.

Chegando na casa do meu irmão ele me disse, olha aqui esta gaveta, você acha que dois pirralhos podem arrombar essa fechadura?

Podem. Como? Quer ver eu arrombar essa merda?

Você é um adulto.

Onde é que está a Helena?

Está no quarto.

Chama ela aqui.

Contei para a mulher dele a tal notícia do jornal, que eu inventara.

Vivo pedindo ao Carlos para se livrar dessa porcaria, mas ele não me ouve, disse Helena.

Eu vim aqui para comprar o revólver, mas esse idiota não quer vender.

O que você vai fazer com o revólver?, perguntou Carlos.

Nada. Possuí-lo, apenas. Eu sempre quis ter um revólver.

Helena e o meu irmão discutiram algum tempo. Ela venceu o debate ao dizer que um dos meninos podia pegar o chaveiro quando meu irmão estivesse dormindo, ou quando ele esquecesse o chaveiro num lugar onde os moleques pudessem achar, ou em outra ocasião qualquer. Afinal, Carlos abriu a gaveta e tirou o revólver.

E você, para piorar as coisas, mantém esse troço carregado, eu disse, depois de examinar a arma.

Maluco irresponsável, disse Helena, furiosa, você sempre me disse que o revólver não tinha balas. Olha, deixa o seu irmão levar essa porcaria com ele, agora. Do contrário eu saio de casa e levo as crianças.

Peguei o revólver e fui para o meu apartamento. Telefonei para a minha namorada. Senti vontade de ir ao banheiro mas sabia que ia ver sinais de sangue na urina, o que sempre me dava calafrios. Isso podia atrapalhar o meu encontro. Urinei de olhos fechados e também de olhos fechados acionei a válvula de descarga várias vezes.

Enquanto esperava minha namorada, fiquei pensando no futuro, fumando e tomando uísque. Eu não ia ficar a vida inteira enchendo com xixi uma bolsa colada no corpo, que depois tinha que ser esvaziada, sei lá de que maneira. Como eu poderia ir à praia? Como poderia fazer amor com uma mulher? Imaginei o horror que ela sentiria ao ver aquela coisa.

Minha namorada chegou e fomos para a cama.

Você está preocupado com alguma coisa, ela disse, depois de algum tempo.

Não estou me sentindo bem.

Não se preocupe, querido, podemos ficar apenas conversando, adoro conversar com você.

Essa é uma das piores frases que um homem pode ouvir quando está nu com uma mulher nua na cama.

Levantamos e nos vestimos sem olhar um para o outro. Fomos para a sala. Conversamos um pouco. Minha namorada olhou para o relógio, disse tenho que ir, querido, me deu uns beijinhos no rosto, foi embora e eu dei um tiro no peito.

Mas esta história não termina aqui..Eu devia ter atirado na cabeça, mas foi no peito e não morri. Durante a convalescença, Roberto me visitou várias vezes para dizer que tínhamos pouco tempo, mas ainda podíamos fazer a cirurgia da bexiga, com êxito.

Isso foi feito. Agora eu esvazio com facilidade a bolsa de urina. Ela fica bem escondida sob a roupa, ninguém percebe que está ali, sobre o meu abdome. O câncer parece que foi extirpado. Não tenho mais namorada e estou viciado em palavras cruzadas. Deixei de ir à praia. Fui uma vez, para jogar o revólver no mar.


Rubem Fonseca
Secreções, excreções e desatinos
Companhia das Letras, São Paulo, 2001.




Nenhum comentário:

Postar um comentário