segunda-feira, 16 de junho de 2014

Franz Kafka / O abutre


Franz Kafka
O ABUTRE
Tradução de Isabel Castro Silva
        Era um abutre que me picava os pés. Tinha já rasgado as botas e as meias e agora bicava os próprios pés. Bicava sempre sem parar, esvoaçava depois inquieto várias vezes à minha volta e retomava o trabalho. Um homem passou por nós, observou por um momento e depois perguntou por que tolerava eu o abutre.
“Não tenho como me defender”, disse eu, “ele chegou e começou a bicar-me, e é claro que o quis enxotar, tentei mesmo estrangulá-lo, mas um animal destes tem muita força, também já queria saltar-me para a cara, por isso preferi sacrificar antes os pés. Agora já estão quase esfacelados.”
“Imagine-se, deixar-se torturar assim”, disse o homem, “um tiro e é o fim do abutre.”
“A sério?” perguntei eu, “e o senhor não quer tratar disso?”
“Com muito gosto”, disse o homem, “tenho só de ir a casa buscar a espingarda. Consegue esperar ainda uma meia hora?”
“Não sei”, disse eu, e por um instante fiquei hirto de dor, depois disse: “Em todo o caso tente, por favor.”
“Muito bem”, disse o homem, “vou apressar-me.”
Durante a conversa o abutre ouvira serenamente, deixando vaguear o olhar entre mim e o homem. Via agora que ele entendera tudo, levantou voo, curvou-se muito para trás para ganhar balanço e como um atirador de lanças enfiou então o bico pela minha boca até o mais fundo de mim. Ao cair para trás senti-me liberto enquanto no meu sangue que enchia todas as profundezas e transbordava de todas as margens ele se afogava sem salvação.


Franz Kafka
Contos
Seleção e prólogo de Jorge Luis Borges
Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2005, p. 17-18




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