sábado, 12 de abril de 2014

Marguerite Duras / O homen atlântico

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Marguerite Duras
Marguerite Duras
O homem atlântico
    

«Vais avançar. Vais andar como costumas quando estás sós e pensas que alguém está  olhar para ti, Deus ou eu, ou este cão ao longo do mar, ou esta gaivota trágica face ao vento, tão só frente ao objecto atlântico.
(...)


És a extensão do mar, a extensão destas coisas seladas entre si pelo teu olhar.
O mar está à tua esquerda neste momento. Ouves o barulho dele misturado com o do vento.
Em lances intermináveis, avança em direcção a ti, em direcção às colinas da costa.




Tu e o mar, para mim são um todo, um só objecto, o do meu papel nesta aventura. Também eu olho para o mar. Tens de olhar como eu, como eu olho, o mais que posso, em vez de ti.



Saíste do campo da câmara.



Estás ausente.
(...)




Só a tua ausência fica, agora já sem nenhuma espessura, nenhuma possibilidade de nela abrir um caminho, de nela sucumbir de desejo.
(...)




Ontem à noite, depois da tua partida definitiva, fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque, fui para ali onde fico sempre no mês trágico de Junho, esse mês que inaugura o inverno.
Tinha varrido a casa, tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral. Estava tudo limpo de vida, isento, vazio de sinais, e depois disse para comigo: vou começar a escrever para me curar da mentira de um amor que acaba.
(...)



E depois comecei a escrever.
(...)




Disse para mim que te teria amado. Pensava que já só me restava de ti uma recordação hesitante, mas não; enganava-me, havia ainda estas praias em volta dos olhos, onde beijar e deitar na areia ainda quente, e esse olhar centrado na morte.
(...)




E depois o sol levantou-se. Um ave atravessou o terraço ao longo da parede da casa. Pensava que a casa estava vazia e chegou tão perto que esbarrou numa rosa, uma daquelas a que eu chamo de Versalhes. Foi brutalmente um movimento, o único do parque abaixo do nível da luz do céu. Ouvi a rosa amarfanhada pela ave no veludo do seu voo. E olhei para a rosa. Primeiro moveu-se, como se estivesse animada de vida, e depois a pouco e pouco voltou a ser uma rosa comum.



Ficaste no estado de teres partido. E fiz um filme da tua ausência.
(...)




Ao mesmo tempo que já não te amo não amo mais nada, só a ti, ainda.
Esta noite chove. Chove em volta da casa e sobre o mar também. O filme vai ficar assim, como está. Não tenho mais imagens para lhe ar. Já não sei onde estamos, em que fim de que amor, em que recomeço de que outro amor, em que história nos perdemos. Sei apenas quanto ao filme. Apenas quanto ao filme, sei, sei que nenhuma imagem mais poderia prolongá-lo.



O dia de hoje não amanheceu e não há o menos sopro no alto das florestas ou nos campos, nos vales. Não se sabe se é o verão ainda ou o fim do verão ou uma estação mentirosa, indecisa, horrível, sem nome.



Já não te amo como no primeiro dia. Já não te amo.



No entanto continuam a existir em volta dos teus olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o olhar e esta existência que te anima no sono.
Continua também esta exaltação que me vem por não saber o que fazer disto, deste conhecimento que tenho dos teus olhos, das imensidades que os teus olhos exploram, por não saber o que escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar da sua insignificância original.
(...)



É assim que permaneces face a mim, na doçura, numa provocação constante, inocente, impenetrável.
E tu não sabes.»


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