segunda-feira, 24 de março de 2014

Romain Gary / Uma Vida à Sua Frente


Romain Gary
Uma Vida à Sua Frente 

Trinta anos depois da morte do escritor, sai final­mente em Por­tu­gal “Uma Vida à Sua Frente”, o livro que Romain Gary assi­nou como Émile Ajar para poder gan­har, violando as regras, o seu segundo Prémio Goncourt. Ao mesmo tempo, em Paris, uma exposição conta a história de um dos maiores embustes do mundo literário. 
Por Isabel Coutinho
No dia 17 de Novem­bro de 1975, o júri do mais impor­tante prémio literário francês reuniu-se e, à oitava ronda, atribuiu o Prémio Goncourt ao sen­hor Émile Ajar pelo seu romance “La Vie Devant Soi”. Na altura, os jor­nal­is­tas per­gun­taram insis­ten­te­mente se o júri não se tinha sen­tido pouco à von­tade por estar a atribuir o prémio a um “autor descon­hecido”. Poucos tin­ham visto Émile Ajar em carne e osso. Do escritor havia ape­nas uma fotografia um homem de cabe­los ao vento em frente ao mar e sabia-se que tinha escrito, tam­bém sob pseudón­imo, “Gros-Câlin”, o seu primeiro romance.
O júri não deu importân­cia a estes por­menores e foi assim que, sem ninguém saber, Romain Gary (1914–1980) se tornou no único escritor a gan­har duas vezes o Goncourt, um prémio que, estip­ula o reg­u­la­mento, só se pode rece­ber uma vez na vida. O escritor francês já tinha rece­bido o prémio literário em 1956, pelo romance “As Raízes do Céu”, e voltava agora a ser escol­hido com este livro. Só se soube a ver­dade seis meses depois da sua morte. A história nar­rada por Momo, um ado­les­cente muçul­mano de 14 anos que vive no bairro de Belleville, em Paris, na casa de Madame Rosa, uma pros­ti­tuta refor­mada e sobre­vivente de Auschwitz, é esta sem­ana pub­li­cada, pela primeira vez em Por­tu­gal, numa edição da Sex­tante. Foi adap­tado para cin­ema, por Moshé Mizrahi, com Simone Sig­noret a inter­pre­tar Madame Rosa.
Romain Gary arqui­tec­tou tudo. Teve atenção aos por­menores para que ninguém sus­peitasse de que era ele quem estava por trás de Émile Ajar. Arran­jou um cúm­plice, con­tra­tou advo­ga­dos e men­tiu com os dentes todos, até aos ami­gos mais ínti­mos. Antes de se sui­ci­dar com um tiro, deixou indi­cações ao seu filho e ao edi­tor para que o man­u­scrito “Vie et Mort d’Émile Ajar” fosse pub­li­cado postumamente.
Nes­sas dezenas de pági­nas, o escritor que nasceu em Vil­nius, na Lituâ­nia, filho de rus­sos judeus, e viveu em França, com a mãe, desde os 14 anos, torna pública a fal­ca­trua. “Diverti-me muito. Adeus e obri­gado”: assim ter­mina o livro onde conta como engen­drou um dos maiores embustes do mundo literário.
O escritor — que começou por ser avi­ador e herói de guerra, fez car­reira diplomática na Bul­gária, em França, na Suíça e nos EUA, e foi cineasta, jor­nal­ista e actor rev­ela aí que a sua prin­ci­pal moti­vação foi mostrar que os críti­cos literários france­ses eram tolos. Em “Romain Gary: a Tall Story”, biografia pub­li­cada no final do ano pas­sado, David Bel­los afirma que o escritor estaria farto de ser cat­a­loga do e desre­speitado pelos críti­cos. “Ele que­ria provar ao mundo que os jor­nal­is­tas e os edi­tores são preguiçosos, não lêem os tex­tos que criti­cam ou os livros que sug­erem, e apoiam-se em pre­con­ceitos e fofo­cas para for­marem as opiniões que impõem à comu­nidade”, escreve o autor, pro­fes­sor de francês e de lit­er­atura com­parada da Uni­ver­si­dade de Princeton.
Na ver­dade, só depois de ter acabado de escr­ever “Gros-Câlin” é que Romain Gary decidiu publicá-lo com outro nome. Sen­tia que era muito difer­ente das suas obras ante­ri­ores. O romance é quase um diário de um homem que vive com uma ser­pente pitão num aparta­mento em Paris e tem uma lin­guagem con­sid­er­ada inovadora.

Romain Gary


Foi assim que tudo começou

Como é que Romain Gary con­seguiu levar avante, e sem que ninguém sus­peitasse, um dos maiores embustes do mundo literário? Primeiro pre­cisou de con­vencer o seu amigo Pierre Michaut, um homem de negó­cios que vivia no Brasil, a entrar no jogo. Ele aceitou e, numa das suas vis­i­tas a Paris, dirigiu-se ao escritório do edi­tor Robert Gal­li­mard com o man­u­scrito de “Gros-Câlin” debaixo do braço.

Contou-lhe que estava ali em nome de um francês que vivia no Rio de Janeiro. Por razões legais, esse exi­lado não podia usar o nome ver­dadeiro nem regres­sar a França. O edi­tor, conta David Bel­los na biografia, leu duas pági­nas e enviou o livro para apre­ci­ação. No dia seguinte rece­beu um con­vite para ir a casa de Romain Gary. Quando lá chegou, encon­trou o escritor com um homem que lhe pare­cia famil­iar. “Não o estás a con­hecer?”, perguntou-lhe Gary. Robert Gal­li­mard perce­beu a marosca.
Não me digas que me pre­gaste esta par­tida…”, disse. Romain Gary obrigou-o a jurar que não con­taria o seg­redo a ninguém. O edi­tor cumpriu a promessa, bem como o pequeno grupo que sabia que era Gary o ver­dadeiro Émile Ajar: a secretária que dac­tilo­grafava os tex­tos, a sua ex-mulher e mãe do seu filho, a actriz Jean Seberg, os advo­ga­dos, e o seu primo Paul Pavlow­itch, que terá um papel fun­da­men­tal nesta história.
Ape­sar de a primeira leitora de “Gros-Câlin” ter dado uma apre­ci­ação muito pos­i­tiva, os edi­tores que o leram a seguir não ficaram tão entu­si­as­ma­dos. Conta David Bel­los que o escritor Ray­mond Que­neau, que fazia parte do painel de leitura, disse que o autor devia ser um chato mas tinha tal­ento. Acon­sel­hava que o livro fosse pub­li­cado na Mer­cure de France, uma fil­ial da Gallimard.
Quando o livro foi pub­li­cado, os críti­cos literários ten­taram desco­brir quem era o autor por trás do pseudónimo.
Nunca sus­peitaram de Romain Gary, que nesse ano pub­lica “La Nuit Sera Calme”, onde responde às per­gun­tas de um seu amigo de ado­lescên­cia, o jor­nal­ista François Bondy.
Para que tudo cor­resse bem com o pseudón­imo, o escritor não assi­nou os con­tratos com a edi­tora e, rece­ando a curiosi­dade dos jor­nal­is­tas, pediu ao primo Pavlow­itch que se envolvesse na história fazendo-se pas­sar por Émile Ajar. O plano: via­jar para o Rio de Janeiro e aí encar­nar a per­son­agem de Émile Raja, um médico francês que, acu­sado da prática de abor­tos clan­des­ti­nos, teria saído de França e adop­tado o sobrenome Ajar como pseudón­imo literário. A viagem nunca chegou a acontecer.

A men­tira con­tinua

Quando começou a cor­rer o rumor de que “Gros-Câlin” pode­ria ser can­didato ao Prémio Renau­dot (atribuído a primeiras obras), Robert Gal­li­mard avisa Romain Gary de que ele pode­ria meter-se em apuros. O escritor deu instruções ao advo­gado para que o livro fosse reti­rado das lis­tas de todos os prémios a atribuir em 1974.

Mas, com o livro nas livrarias, Émile Ajar teve de apare­cer e por isso Paul Pavlow­itch deu uma entre­vista ao “Le Monde”. A sua fotografia sai nos jor­nais. Entu­si­as­mado com o sucesso, Romain Gary começa a escr­ever o segundo livro. Tra­bal­hava de manhã na obra de Émile Ajar e de tarde na obra de Romain Gary. Em Out­ubro, pub­lica “Uma Vida à Sua Frente”, que teve como primeiro título “La Ten­dresse des Pier­res”. Quando a capa do livro já estava a ser impressa, a mul­her de Pavlow­itch repara que o título é igual àquele que uma per­son­agem de um romance ante­rior de Gary dava ao livro que estava a escr­ever. Antes que alguém notasse a coin­cidên­cia, Émile/ Paul Pavlow­itch pediu ao edi­tor para parar a impressão.
Mas o pior estava para vir. A 17 de Novem­bro de 1975, “Uma Vida à Sua Frente” recebe o Goncourt. Se alguém desco­brisse que o romance era de um escritor que já tinha ven­cido o prémio, Romain Gary seria preso. Por isso, três dias depois, Émile Ajar faz saber que recusa o prémio.
O júri responde que “o Goncourt é como a vida e como a morte não se aceita nem se recusa”. Entre­tanto, um jor­nal­ista con­segue, através da fotografia que cir­cu­lara nos jor­nais, perce­ber que Émile Ajar era Paul Pavlow­itch, primo de Romain Gary, e pub­lica a história. Tudo é posto em causa. Gary é forçado a dizer pub­li­ca­mente que não aju­dou o primo a escr­ever o livro e que não tem nada a ver com Émile Ajar. Nunca mais poderá con­tar a ver­dade, e por­tanto começa a escr­ever “Pseudo”, livro em que Émile Ajar conta como Paul Pavlow­itch, inter­nado numa clínica psiquiátrica, escreveu os seus livros. A men­tira continua.
O último livro assi­nado por Émile Ajar, “L’Angoisse du Roi Salomon”, é pub­li­cado em 1979. No ano seguinte, aos 66, Romain Gary suicida-se na sua casa em Paris: “Fiz um pacto com o sen­hor lá de cima, vocês con­hecemno? Fiz um pacto com ele de forma a nunca me deixar envel­he­cer.” A sua ex-mulher, Jean Seberg, tinha apare­cido morta no ano ante­rior. “Nen­huma lig­ação”, escreve na nota de suicí­dio que deixou.
Seis meses depois, em 1981, é rev­e­lada a ver­dadeira iden­ti­dade de Émile Ajar. Paul Pavlow­itch pub­lica “L’Homme que l’On Croy­ait”, onde conta a sua ver­são da história. É entre­vis­tado no pro­grama “Apos­tro­phes”, de Bernard Pivot. Pouco depois, é pub­li­cado o man­u­scrito “La Vie et Mort d’ Émile Ajar”, onde Romain conta que a jor­nal­ista Laure Boulay, do “Paris Match”, lhe disse a certa altura que estava con­ven­cida de que Romain Gary e Émile Ajar eram a mesma pes­soa. Romain Gary apaixonou-se per­di­da­mente por ela e respon­deu: “É evi­dente. Ninguém se aperce­beu a que ponto Ajar foi influ­en­ci­ado por mim. Podemos até falar de um ver­dadeiro plá­gio. Mas enfim, é um jovem autor. Não faço questão de protes­tar.” Esta história mirabolante volta agora a ser con­tada, 30 anos depois da morte do escritor, no Musée des Let­tres et Man­u­scrits, em Paris. Até 3 de Abril, a exposição “Romain Gary, des ‘Racines du Ciel’ à ‘La Vie Devant Soi’” mostra os man­u­scritos, as car­tas, as notas, as fotografias e os arti­gos de imprensa que recon­stituem o grande golpe.
Artigo pub­li­cado no caderno ípsilon, do PÚBLICO, de 21 de Janeiro de 2010
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