quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Salman Rushdie de pernas pro ar




Salman Rushdie de pernas pro ar


Rafael Pereira
05 / 08 / 2010

Rushdie, indiano radicado no Reino Unido, é um autor consagrado, vencedor de um Brooker Prize, um dos prêmios mais importantes da literatura mundial. Mas quem presenciou sua passagem na Flip, em 2005, vai sempre lembrar dele como o escritor que dançou com as mãos para o alto até o dia amanhecer. Foi em uma festa, e, no imaginário popular, ajudou a consolidar a Flip como um evento que aproxima ídolos da literatura a simples leitores. É ótimo lê-los, mas é possível tocar neles ou bater um papo. Ou dançar a noite inteira a seu lado. 



Cinco anos depois, Rushdie se diz mais velho, e impressiona-se com a popularidade da festa e as mudanças na estrutura da cidade. Ele veio à cidade lançar seu último romance, Luka e o Fogo da Vida, uma história de realismo fantástico inspirada em seu filho mais novo. Em entrevista descontraída, com as pernas pro alto no lobby de sua pousada, o autor conversou com ÉPOCA sobre o livro e suas motivações como escritor. Falou também sobre os dez anos em que passou cercado de seguranças depois de condenado a morte pelo aiatolá Khomeini, e de como o episódio mostrou-se a pré-história do que culminou no ataque às Torres Gêmeas, em 2001. 


ÉPOCA – Sua primeira visita à cidade de Paraty foi na Flip de 2005. Mudou muita coisa? 

Salman Rushdie – Da última vez que vim, tinha que ir para um ciber café para conseguir conexão com a internet. Agora tem conexão sem fio no hotel... É uma grande diferença (risos). 


ÉPOCA – Em 2005, ficou marcada para sempre a imagem do senhor dançando com as mãos para o alto até o amanhecer. Já sabe onde será a festa este ano? 

Rushdie – Ainda não! Só não sei se posso dançar mais daquela maneira. Estou um pouco mais velho... 


ÉPOCA – O que move o senhor como escritor? 

Rushdie – Eu nunca quis fazer nada além de escrever. Tive uma frágil fantasia de que um dia seria ator, fazia algumas peças quando era estudante na universidade de Cambridge, mas nada sério. Eu sempre fui um leitor costumaz. Quando criança, adorava ler. E tenho a convicção de que a primeira característica de um bom escritor é amar livros.


ÉPOCA – E quando o senhor percebeu que era bom nisso? 

Rushdie – Demorou, o começo de minha carreira foi bastante incerto. Eu sempre fui um bom aluno de inglês, mas isso não ajudou muito. Escrevi um romance que ninguém publicou, outro que publicaram mas ninguém gostou e um terceiro, que não mostrei para ninguém porque eu mesmo odiava. E aí eu comecei a ter idéias para o que seria Os Filhos da Meia-Noite (livro com o qual Salman Rushdie ganhou o Booker Prize). E demorei cinco anos para escrevê-lo. 


ÉPOCA – Quanto tempo demorou do primeiro livro até Os Filhos da Meia-Noite

Rushdie – Deixei a universidade com 21 anos e Os Filhos da Meia-Noite foi publicado quando eu tinha 33. Ou seja, demorou 12 anos para que eu me firmasse como escritor. Alguns autores da minha geração alcançaram o sucesso muito mais cedo, como Julian Barnes e William Boyd, que também está na Flip. Eu sentia que tinha ficado na posição de largada. Demorou muito para eu recuperar o tempo perdido. 


ÉPOCA – E o que acabou por melhorar sua literatura? 

Rushdie – Acho que passei a me conhecer melhor. Para mim, um bom escritor tem que saber quem é. Se você não sabe quem é, não sabe de onde as palavras estão saindo. E quando você tem uma raiz fixa em um país, nasceu e cresceu em um mesmo lugar, isso é mais fácil. Mas quando você foi transplantando – nasceu em um lugar e cresceu em outro –, como eu, fica mais complicado. Agora, olhando para trás, vejo que existia uma questão séria de identidade, que me custou doze anos. 


ÉPOCA – O senhor está em Paraty com seu filho, certo? 

Rushdie – Isso, o mais novo, que inspirou meu último livro. 


ÉPOCA – E o que ele achou de Luka e o Fogo da Vida? 

Rushdie – Ele foi o primeiro leitor! Se ele não aprovasse eu não mostraria para mais ninguém. E ele aprovou. Ele é, antes de tudo, um bom leitor. Tem 13 anos, e tinha 12 quando escrevi o livro. Agora mesmo, deixei ele no quarto e ele resolveu pegar seu Cem anos de solidão (clássico do escritor colombiano Gabriel García Márquez) para ler. Ele está lendo Cem anos de solidão, e está adorando! (risos


ÉPOCA – Luka e o Fogo da Vida remonta o mesmo núcleo familiar de seu livro Haroun e o Mar de Histórias, de 1990, inspirado em seu filho mais velho. Qual foi a motivação para recuperar elementos de Haroun

Rushdie – Eu não queria voltar aos mesmo motivos que me levaram a escrever Haroun. Recriei apenas o núcleo familiar, um mundo imaginário, mas precisava de outras razões para voltar lá. Em Haroun, a mãe do garoto deixa o pai e o pai perde a habilidade de contar histórias. É a aventura do garoto tentando recuperar a mágica do pai. No livro atual, esse não é o problema. Nesse caso, é uma questão mais existencial, se você preferir. Tem a ver com o fato de que, quando eu tive meu filho mais novo, tinha 50 anos. O livro é sobre vida e morte. Agora, a criança precisa salvar a vida de seu pai, e não só sua habilidade de contar histórias. Isso me dá a razão para a nova jornada. E tive que criar todo esse novo mundo. O que é a parte mais divertida. O mundo que criei para esse livro corresponde ao mundo dentro de mim. Contém elementos dos clássicos, da cultura popular... Isso é o que está dentro da minha cabeça. 


ÉPOCA – O livro usa referências de videogames e internet. Foi difícil entrar nesse mundo? Rushdie – Eu vejo meus filhos e seus amigos, e sei os jogos que eles gostam ou não. Não me interesso nos jogos em que se matam pessoas, mas gosto dos que são uma busca por algo. Mesmo nos mais simples, como Super Mario, ele se lança em uma jornada para salvar uma princesa. Assim como no livro, ele se lança em busca de uma coisa impossível de se conseguir. O link dos videogames com a vida é claro. E é uma discussão antiga, contida nas histórias clássicas. Como a busca pelo Santo Graal, por exemplo. Para se conseguir algo na vida, você precisa ultrapassar obstáculos. No jogo, existe um dragão no fim da fase, e você precisa matá-lo (risos). O interessante é que, depois de matar esse dragão, existe outro vilão ainda mais perigoso para matar. Um obstáculo mais difícil. E assim por diante. Quem criou videogames tinha uma bela idéia das histórias clássicas, que sempre funcionaram. Com uma pequena diferença... Nos videogames, a idéia de vida é diferente. Você morre, e pode começar de novo, cem, mil vezes. Já que Luka é uma história sobre a vida e a morte, achei interessante usar essa ferramenta. Foi uma maneira de atrair jovens leitores, que me agradou muito. 



ÉPOCA – O próximo livro do senhor será sobre o período da fatwa, a condenação de morte que o senhor sofreu do aiatolá Khomeini por ter escrito Versos Satânicos. Em que fase está o projeto? 

Rushdie – Estou começando a escrever. Passei alguns anos, primeiro, lendo o material sobre a época. Li os diários que escrevi durante esse período, mas também tudo o que foi dito pela imprensa sobre o assunto. Só então comecei a escrever, e já tenho algo em torno de sessenta páginas. Só devo terminar no fim do ano que vem, talvez um pouco antes. 


ÉPOCA – Qual era a relação do senhor com a fé quando escreveu o livro que rendeu sua condenação? 

Rushdie – Não existia. Nunca fui religioso, mas se você nasce na Índia e quer escrever sobre esse mundo, tem que se interessar pelo assunto. Mesmo não sendo religioso, as pessoas que você conhece são. E eu sempre me interessei muito por isso como estudioso. Meu pai também era como eu. Ele lia textos originais do Islã, sabia línguas, mas não tinha fé. Uma das heranças maravilhosas que meus pais nos deram, a mim e a meus irmãos, foi nos liberar da obrigação religiosa. Minha mãe não gostava que comêssemos carne de porco, mas isso foi o máximo de prática religiosa que tivemos em casa (risos). 


ÉPOCA – E qual foi a influência dos dez anos de fatwa no seu cotidiano? 

Rushdie – Estragou dez anos da minha vida, isso foi o que aconteceu. Eu fiquei feliz de poder continuar escrevendo, mas meu cotidiano foi muito influenciado. Meu filho mais velho, que hoje tem 31 anos, tinha 9 quando tudo aconteceu. Tinha 19 anos quando terminou. Ele teve que crescer naquela experiência, e para ele... Porque as coisas não aconteceram comigo apenas, mas com a minha família, com meus amigos. 


ÉPOCA – O senhor precisou ficar escondido?


Rushdie – Não gosto da palavra escondido, porque faz parecer que eu vivi em um buraco. Eu era cercado de muita segurança. O que é o oposto de se esconder, porque seguranças são muito visíveis. Tudo era possível, mas mais difícil. Foi como andar com sapatos de pedra. Dá para andar, mas se anda mais devagar, e é mais cansativo. 

ÉPOCA – Diante de tanto medo, foi possível tirar dali alguma lição?

Rushdie – Quando você está no meio de algo como isso, tem que entender muito claramente quem são seus inimigos, contra o que ou contra quem você está lutando. Senão você enlouquece. E isso eu aprendi muito bem. De um lado estava tudo que eu amava, de outro tudo o que eu detestava. E eu tinha uma boa sensação: “Quer saber? Pelo menos eu estou no lado certo”. Se você for um soldado americano no Iraque ou no Afeganistão, é possível ter a sensação de que se está no lado errado. “O que estamos fazendo aqui?”. 


ÉPOCA – É correto afirmar que, hoje, o mundo ocidental vive sob o medo de uma espécie de fatwa?


Rushdie – Existe um medo crescente no mundo. E o que sinto é que o ataque a Versos Satânicos foi um prólogo de tudo o que está acontecendo. E o ataque às Torres Gêmeas, em 11 de Setembro, foi o clímax, o evento principal. Minha condenação a morte foi um pequeno sinal do que aconteceria, e hoje todo mundo sabe o que é e está sofrendo com isso. Assim, desligando o escritor da pessoa, sinto que torna o assunto do livro que estou escrevendo sobre minha experiência mais interessante. Não é mais o que aconteceu comigo, mas sim o que está acontecendo com todos nós. Isso é o que eu estou tentando escrever.

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