quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

Ilustração de Ana Juan.
400 ANOS DA MORTE DE DOIS GÊNIOS

Shakespeare e Cervantes, essa é a questão

A coincidência da morte de dois gigantes da literatura incentiva a busca por identidade comum


ALBERTO MANGUEL
16 ABR 2016 - 14:15 COT



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Nossa aptidão para ver constelações de estrelas distantes entre si, e geralmente mortas, aparece em outras áreas de nossa vida sensível. Agrupamos em uma mesma cartografia imaginária marcos geográficos diferentes, feitos históricos isolados, pessoas cujo único ponto em comum é um idioma ou um aniversário compartilhado. Criamos circunstâncias cujas explicações podem ser encontradas apenas na astrologia ou na quiromancia, e a partir dessas assombrações, tentamos responder a velhas perguntas metafísicas sobre o azar e a sorte. O fato de que as mortes de William Shakespeare e Miguel de Cervantes sejam quase coincidentes faz com que não apenas associemos os dois personagens singulares em comemorações oficiais obrigatórias, como também busquemos nesses seres tão diferentes uma identidade em comum.
Do ponto de vista histórico, suas realidades foram notoriamente distintas. A Inglaterra de Shakespeare transitou entre a autoridade de Isabel e a de Jaime, a primeira de ambições imperiais e a segunda de preocupações internas, características que se refletiram em obras como Hamlet e Julio César, por um lado, e em Macbeth e O Rei Lear, por outro. O teatro era uma arte menosprezada na Inglaterra: quando Shakespeare morreu, depois de ter escrito algumas das obras que hoje em dia consideramos universalmente imprescindíveis para nossa imaginação, não houve cerimônias oficiais em Stratford-upon-Avaon, nenhum de seus contemporâneos europeus escreveu uma elegia em sua homenagem, e ninguém na Inglaterra propôs que fosse sepultado na abadia de Westminster, onde jazem escritores célebres como Edmund Spenser e Geoffrey Chaucer. Shakespeare era (segundo seu quase contemporâneo John Aubrey) filho de um açougueiro, e quando era adolescente, gostava de recitar poemas diante dos perturbados matadouros. Foi ator, empresário teatral, cobrador de impostos (como Cervantes) e não sabemos com certeza se alguma vez viajou para outro país. A primeira tradução de uma de suas obras apareceu na Alemanha, em 1762, quase um século e meio depois de sua morte.

O espanhol do autor de Dom Quixote é despreocupado, generoso, esbanjador. Importa mais o que conta que como o conta

Cervantes viveu em uma Espanha que estendia sua autoridade sobre a parte do Novo Mundo a que tinha direito pelo Tratado de Tordesilhas, com a cruz e a espada, decapitando “um número infinito de almas”, disse o padre Las Casas, para “inchar-se de riquezas em um curto espaço de dias e elevar-se a estados muito altos e sem proporções de seu povo” com a “insaciável cobiça e ambição que tiveram, que foi maior do que o mundo poderia ser”. Com sucessivas expulsões de judeus e árabes, convertendo-os em seguida, a Espanha tentou inventar uma identidade cristã pura para si própria, negando a realidade de suas raízes entrelaçadas. Em tais circunstâncias, Dom Quixote foi um ato subversivo, com a entrega da autoria do que seria a obra-prima da literatura espanhola a um mouro, Cide Hamete, e com o testemunho do mourisco Ricote denunciando a infâmia das medidas de expulsão. Miguel de Cervantes (conta ele mesmo) foi “soldado por muitos anos e preso durante cinco anos e meio. Perdeu a mão esquerda com um tiro de mosquete na batalha de Lepanto, uma ferida que, embora pareça feia, foi tratada como bela”. Teve missões na Andaluzia, foi cobrador de impostos (como Shakespeare), ficou preso em Sevilha, foi membro da Congregação de Escravos do Santíssimo Sacramento, e mais tarde, noviço da Terceira Ordem. Quixote tornou-o tão famoso que, quando escreveu a segunda parte, disse ao bacharel Carrasco, e sem exageros, “que tenho para mim que atualmente foram impressos mais de doze mil livros dessa história; senão, diga isso a Portugal, Barcelona e Valência, onde eles foram impressos; e ainda há boatos de que está sendo impresso na Antuérpia, e para mim se verifica que não haverá nação ou língua em que ela não será traduzida”.

Dom Quixote desenhado por Robert Smirke para uma tradução inglesa de 1818. O pintor britânico ilustrou tanto a novela de Cervantes quanto os dramas de Shakespeare.


A língua de Shakespeare havia chegado ao seu ponto mais alto. A confluência das línguas germânicas e latinas e o riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiram que Shakespeare alcançasse assombrosas extensão sonora e profundidade epistemológica. Quando Macbeth afirma que sua mão ensanguentada “faria púrpura do mar universal, tornando rubro o que em si mesmo é verde”, (“the multitudinous seas incarnadine / Making the green one red”), os lentos epítetos multissilábicos latinos são contrapostos aos bruscos e contundentes monossílabos saxões, ressaltando a brutalidade do ato. Instrumento da Reforma Protestante, a língua inglesa foi submetida a um severo escrutínio pelos censores. Em 1667, na História da Real Sociedade de Londres, o bispo Sprat alertou sobre os perigos sedutores dos extravagantes labirintos do barroco e recomendou o retorno à primitiva pureza e brevidade da linguagem, “quando os homens comunicavam um certo número de coisas em um número igual de palavras”. Apesar dos magníficos exemplos do barroco inglês - sir Thomas Browne, Robert Burton, o próprio Shakespeare, claro -, a Igreja anglicana exigia exatidão e concisão, que permitiriam aos eleitos o entendimento da Verdade Revelada, como havia feito a equipe de tradutores da Bíblia por ordem do rei Jaime. Shakespeare, no entanto, conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo. A acumulação de metáforas, a profusão de adjetivos, as mudanças de vocabulário e de tom aprofundam e não diluem o sentido de seus versos. O talvez famoso demais monólogo de Hamlet seria impossível em espanhol porque exige escolher entre o ser e o estar. Em seis monossílabos ingleses, o príncipe da Dinamarca define a preocupação essencial de todo ser humano consciente; Calderón, no entanto, precisa de 30 versos espanhóis para dizer a mesma coisa.

O mestre de Avon conseguiu ser milagrosamente barroco e exato, expansivo e escrupuloso ao mesmo tempo

O espanhol de Cervantes é despreocupado, generoso, esbanjador. Ele se importa mais com o que conta do que com como conta, e menos com como conta do que com o puro prazer de alinhavar palavras. Frase após frase, parágrafo após parágrafo, é na fluência das palavras que viajamos pelos caminhos de sua Espanha empoeirada e difícil, e seguimos as violentas aventuras do herói justiceiro e reconhecemos os personagens vivos de Dom Quixote e Sancho. As inspiradas e sinceras declarações do primeiro e as vulgares e não menos sinceras palavras do segundo cobram vigor dramático na enxurrada verbal que as arrasta. Essencialmente, a máquina literária inteira de Dom Quixoteé mais verossímil, mais compreensível, mais vigorosa que qualquer uma de suas partes. As citações cervantinas extraídas de contexto parecem quase banais; a obra completa é talvez o melhor romance que já foi escrito e o mais original.
Se quisermos ceder ao nosso impulso associativo, podemos considerar esses dois escritores como opostos ou complementares. Podemos ver um deles à luz (ou à sombra) da Reforma e o outro da Contrarreforma. Podemos ver um deles como mestre de um gênero popular e de pouco prestígio e o outro como mestre de um gênero popular e de prestígio. Podemos vê-los como iguais, artistas empregando os métodos à disposição para criar obras iluminadas e geniais, sem saber que eram iluminadas e geniais. Shakespeare nunca reuniu os textos de suas obras teatrais (a tarefa ficou a cargo de seu amigo Bem Jonson), e Cervantes estava convencido que sua fama dependeria da Viagem de Parnaso, e de Persiles e Sigismunda.

O riquíssimo vocabulário do inglês do século XVI permitiu a Shakespeare uma extensão sonora e uma profundidade epistemológica assombrosas

Esses dois monstros se conheceram? Podemos suspeitar que Shakespeare ouviu falar de Dom Quixote e que o leu, ou leu ao menos o episódio de Cardenio, que converteu em uma peça que hoje em dia está perdida; Roger Chartier investigou detalhadamente essa tentadora hipótese. A resposta provavelmente é não, mas, se o encontro aconteceu, é possível que nenhum dos dois tenha reconhecido o outro como uma estrela de importância universal, ou que simplesmente não admitiram outro corpo celeste de igual intensidade e tamanho nas suas órbitas. Quando Joyce e Proust encontraram-se, trocaram três ou quatro banalidades, Joyce queixou-se de suas dores de cabeça, e Proust de suas dores no estômago. Talvez tenha acontecido algo semelhante com Shakespeare e Cervantes.

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