segunda-feira, 27 de maio de 2013

Salman Rushdie / Onde está a coragem moral



Salman Rushdie 
Onde está a coragem moral?

Tradução de Berilo Vargas

Artistas que se insurgem contra injustiças perderam apoio na sociedade, afirma o autor de "Os versos satânicos"



Parece-nos mais fácil, nestes tempos confusos, admirar a bravura física do que a coragem moral — a coragem da vida da mente, ou a coragem de figuras públicas. Um homem de chapéu de vaqueiro pula uma cerca para ajudar vítimas das bombas em Boston, enquanto outros fogem de cena: aplaudimos sua bravura, assim como aplaudimos a de soldados que voltam da frente de batalha, ou de homens e mulheres que lutam para superar doenças ou ferimentos debilitantes.


É mais difícil para nós, hoje em dia, ver os políticos, à exceção de Nelson Mandela e Aung San Suu Kyi, como pessoas corajosas. Talvez tenhamos visto demais, ficado descrentes demais das soluções conciliatórias inerentes ao poder. Não há mais Gandhis, não há mais Lincolns. Os heróis de uns (Hugo Chávez, Fidel Castro) são os vilões de outros. Já não concordamos facilmente sobre o que significa ser bom, ter princípios, ser bravo. Quando líderes políticos tomam medidas corajosas — como o fez Nicolas Sarkozy, então presidente da França, ao intervir militarmente na Líbia em apoio da insurreição contra o coronel Muamar Kadafi — tantos são os que duvidam como os que aprovam. A coragem política, hoje em dia, é quase sempre ambígua.

Mais estranhamente ainda, desconfiamos dos que tomam posição contra os abusos do poder ou do dogma.

Nem sempre foi assim. Os escritores e intelectuais que se opunham ao comunismo, Soljenítsin, Sakharov e os demais, eram tidos em alta estima por suas posições. O poeta Osip Mandelstam foi muito admirado por seu “Epigrama de Stalin”, de 1933, no qual descreve o temível líder em termos destemidos — “as imensas baratas risonhas em seu lábio superior” — e não menos porque o poema levou à sua prisão, e por fim à morte, num campo soviético de trabalhos forçados.

Ainda bem recentemente, em 1989, a imagem de um homem carregando duas sacolas de compras e desafiando os tanques da Praça da Paz Celestial se tornou, quase de imediato, um símbolo global de coragem.

E então parece que as coisas mudaram. O “Homem do Tanque” foi quase esquecido na China, e os manifestantes pró-democracia, incluindo os mortos no massacre de 3 e 4 de junho, foram redefinidos, com êxito, pelas autoridades chinesas como contrarrevolucionários. A batalha da redefinição continua, obscurecendo, ou pelo menos confundindo, nossa compreensão de como as pessoas “corajosas” devem ser julgadas. É assim que as autoridades chinesas tratam seus críticos mais conhecidos: acusar Liu Xiaobo de “subversão” e Ai Weiwei de supostos crimes fiscais é uma tentativa deliberada de impedir que se perceba a sua coragem, e de pintá-los como criminosos.

Tão grande é a influência da Igreja Ortodoxa Russa que dentro da Rússia há uma tendência a ver as meninas presas do grupo Pussy Riot como encrenqueiras indecentes, porque fizeram seu famoso protesto em propriedade da igreja. O argumento delas — de que a cúpula da Igreja Ortodoxa Russa mantém relações perigosamente estreitas com o presidente Vladimir Putin — não foi compreendido pelos numerosos detratores, e seu ato não é tido como corajoso, mas impróprio.

Dois anos atrás, no Paquistão, o ex-governador do Punjab Salman Taseer defendeu uma mulher cristã, Asia Bibi, erroneamente condenada à morte nos termos da draconiana lei nacional contra blasfêmia; como resultado, foi morto por um dos seus próprios seguranças. Mumtaz Qadri, o segurança, foi muito elogiado e cobriram-no de pétalas de rosas quando apareceu no tribunal. O falecido Taseer recebeu muitas críticas, e a opinião pública se voltou contra ele. Paixões religiosas fizeram esquecer sua bravura. O assassino foi chamado de herói.

Em fevereiro de 2012, um poeta e jornalista saudita, Hamza Kashgari, publicou três tweets sobre o Profeta Maomé: “Em teu aniversário, quero dizer que sempre amei o rebelde que há em ti, que sempre foste para mim fonte de inspiração, e que não gosto do halo de divindade que te cerca. Não rezarei por ti”. “Em teu aniversário, eu te encontro onde quer que me vire. Quero dizer que sempre amei alguns aspectos de tua personalidade, que odiei outros, e que não compreendi muitos”. “Em teu aniversário, não me curvarei diante de ti. Não te beijarei a mão. Prefiro apertá-la como o fazem os iguais, e sorrir para ti enquanto sorris para mim. Falarei contigo como amigo, e só”.

Depois ele explicou que estava “exigindo um direito seu” à liberdade de expressão e de pensamento. Recebeu pouco apoio público, foi condenado como apóstata, e muitos pediram sua execução. Continua na cadeia.

Os escritores e intelectuais do Iluminismo francês também contestaram a ortodoxia religiosa de sua época, criando, com isso, o conceito moderno de liberdade de pensamento. Pensamos em Voltaire, Diderot, Rousseau e os outros como heróis intelectuais. Infelizmente, pouca gente no mundo muçulmano diria o mesmo de Hamza Kashgari.

Esta nova ideia — de que escritores, estudiosos e artistas que assumem posição contra a ortodoxia ou o fanatismo devem ser responsabilizados por ofenderem as pessoas — espalha-se com rapidez, mesmo em países que, como a Índia, já se orgulharam de sua liberdade.

Em anos recentes, o grande ancião da pintura indiana Maqbool Fida Husain foi obrigado a exilar-se em Dubai e Londres, onde morreu, porque pintou a deusa hindu Saraswati nua (embora até mesmo um exame superficial das antigas esculturas hindus de Saraswati mostre que, apesar de frequentemente enfeitada de joias e ornamentos, com a mesma frequência ela aparece despida).

O festejado romance de Rohinton Mistry “Such a Long Journey” foi retirado do currículo da Universidade de Mumbai porque extremistas locais fizeram objeções a seu conteúdo. O acadêmico Ashis Nandy foi atacado por manifestar opiniões não ortodoxas sobre corrupção nas castas inferiores. E em todos esses casos a visão oficial — que muitos comentaristas e uma fatia substancial da opinião pública parecem compartilhar — foi, essencialmente, a de que os artistas e intelectuais é que se meteram em dificuldades por conta própria. Aqueles que, em outras eras, seriam admirados pela originalidade e independência de espírito, cada vez mais recebem a ordem: “Sentem-se, vocês estão balançando o barco.”

Os Estados Unidos não estão imunes a essa tendência. Os jovens ativistas do movimento Ocuppy Wall Street foram muito censurados (embora as críticas tenham arrefecido depois do trabalho de socorro altamente eficaz que prestaram na passagem do Furacão Sandy). Intelectuais que não pensam de acordo com o figurino, como Noam Chomsky e o falecido Edward Said, foram muitas vezes ignorados, e tidos como malucos extremistas, “antiamericanos”, e, no caso de Said, até mesmo, absurdamente, partidários do “terrorismo” palestino. (Pode-se discordar das críticas de Chomsky aos Estados Unidos, mas é preciso reconhecer que levantar-se e gritá-las na cara do poder americano requer muita coragem. E pode-se não ser a favor dos palestinos, mas é preciso ver que Said se opôs a Yasser Arafat com a mesma eloquência com que criticava os Estados Unidos.)

É uma época aflitiva para quem, como nós, acredita que artistas, intelectuais e cidadãos comuns ofendidos têm o direito de pensar diferente e assumir riscos e, com isso, por vezes, mudar nossa maneira de ver o mundo. Nada nos resta senão reafirmar a importância dessa espécie de coragem, para ter certeza de que indivíduos oprimidos, como Ai Weiwei, as meninas do Pussy Riot e Hamza Kashgari, sejam vistos como o que de fato são: homens e mulheres em luta na linha de frente da liberdade. Como fazê-lo? Assinando petições contra o tratamento que recebem, participando dos protestos. Manifestando-nos. Um pouquinho que seja faz diferença.

Salman Rushdie é escritor, autor de “Joseph Anton — Memórias” (Companhia das Letras, 2012) e “Os versos satânicos”, romance publicado em 1988 (e no Brasil, também pela Companhia das Letras, em 1998), que despertou a ira de radicais islâmicos. Na época, o aiatolá Khomeini, do Irã, emitiu uma fatwa ordenando a morte de Rushdie, que passou anos sob ameaça constante. O artigo foi publicado originalmente no jornal “New York Times”.







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